Aug 25, 2006

Dúvidas...

Metido entre as páginas do Código Penal, que se abre à sua frente como o faz uma rapariga despudorada, ouve o jazz dilacerante de uma cantora negra americana, morta há dois anos. Não menos coincidência, a cantora pede ao amado que a leia, por favor.

Basta olhar de lado e vê a prateleira entupida de livros de poesia e de outras coisas. Raimundo Correia, o filósofo do Parnasianismo, está ladeado por Cassiano Ricardo e pelas vagas cinzentas de Luís de Camões. Ao fundo, por detrás de seus ombros, a cantora negra termina a canção melancólica, e ele a coloca de novo. O piano já retorna, ainda lento, ao ritmo dos dedos negros que ainda seguram o copo de uísque com gelo. A cantora termina o gole e agradece ao público pelos aplausos da música anterior. Ou talvez agradecesse ao piano.

Acima, há uma coleção completa do seu escritor favorito, cujas páginas começam a amarelar e a receber os fungos amarronzados cultivados pelo tempo e que lhe dão alergia. Vários filósofos repousam nas prateleiras acima de sua cabeça e ele, de vez em quando, ergue os olhos em direção aos livros com um olhar de súplica inconfundível.

Está ficando cada vez mais sozinho. Um livro de crônicas descansa ao pé do seu cotovelo esquerdo, cuja capa traz um homem bem-sucedido, trajando paletó negro e gravata vermelha e cujo sorriso cubista estará no noticiário da TV em algumas horas. Tendo lido algumas das crônicas do livro, sabe que o homem também já se sentiu muito solitário quando era jovem.

A cantora negra agora canta outra canção, não menos melancólica que a de antes, e a próxima faixa é a sua favorita. Fala de amor.

À sua frente, a parede branca ilumina seus pensamentos e, do seu lado direito, o controle remoto o encara, deitado sobre um livro de Olavo Bilac e um outro romance, cujo personagem principal tem apenas dezesseis anos, suporta o peso dos outros dois.

Por fim, bem na sua diagonal, à direita, uma pilha de livros técnicos o vigia conspícuos. Fazem questão de lembrá-lo de quem ele é. Ou melhor, de quem ele deve ser.

A cantora negra agora canta sua música favorita, que ainda o emociona com a mesma intensidade do dia em que ele a elegeu favorita. A cantora negra participa com ele de uma doce melancolia que habita o coração das crianças atrasadas.

Lá fora, começa a subir o silêncio burocrata da tarde baixa. Em breve, chegará a noite com seus confortos. Enquanto ela não chega, ele se lembra do cego mascando chiclete na rua e seu coração se enche de esperança. Como se seus olhos pudessem deixar de enxergar as coisas apenas por um segundo.

(Artur Malheiros Neto

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