Jan 15, 2009

Um lugar para chorar

A dor vinha represada há dias, a mulher desejava apenas que não vazasse em hora imprópria, mas que controle poderia ter? Estava dirigindo rumo ao supermercado, quando uma música escapou do rádio para devorá-la inteira, e então, às dez e vinte de uma manhã de sexta-feira, numa rua bastante movimentada, ela começou a chorar.

Buscou os óculos na bolsa, mas não desligou o rádio, pois já não havia remédio, agora que desaguava. Os pensamentos aproveitaram a correnteza e invadiram o cérebro, cristalinos. Todas as verdades emergiram juntas: já que não havia mais como parar o sofrimento, ao menos seria prudente estacionar o carro. Procurou uma rua calma, encostou no meio-fio, mas havia pessoas na calçada. Arrancou. Em outra rua, estacionou diante de um prédio, mas logo viu o porteiro levantando do banquinho e se aproximando, quem é essa estranha a esta hora? Foi embora.

Deslizou por avenidas que exigiam mais velocidade, mas não conseguia ultrapassar os quarenta quilômetros por hora, impossível ir rápido para lugar nenhum. Ela passeava lentamente pela tristeza que finalmente tinha vindo ao seu encontro, sem escolher o momento.

Perto do supermercado, quando já parecia que estava começando a se controlar, uma nova implosão jogou mais e mais lágrimas pra fora, precisava parar. Foi para os arredores de um coléio, mas ali não era seguro, havia muitos conhecidos.

Tentou uma pequena e abandonada alameda residencial, mas viu olhos espiando por trás das cortinas. Foi um pouco mais adiante, aprou de novo em frente a um terreno baldio, e aí foi o medo que não permitiu que ficasse, era só o que faltava ser vítima de alguma outra violência, já lhe bastava o assalto dessa emoção que não cessava.

O ray-ban apoiado no nariz vermelho tentava esconder a pele úmida. Que ninguém alinhe o carro ao lado do meu neste sinal fechado, ela pensava enquanto pensava também em como estava vivendo a vida errada, a vida de outra pessoa que não era ela. Por onde começar a procurar aquela outra que havia sido um dia? Não se dava conta de que era exatamente o que acontecia, o tumultuado encontro dela com ela mesma a lhe atropelar por dentro.

Diminuiu o ritmo perto de uma igreja, mas havia uma parada de ônibus, impossível deter-se ali. Encostou diante de outro prédio, mas já havia morado naquela rua. Na frente do parque, não. Alguém viria cumprimentar, sempre há alguém que lembra de você de algum lugar.

Não conseguindo estacionar o carro, foi obrigada a estancar o choro. Limpou o rosto com um lenço de papel que encontrou no porta-luvas, olhou pelo retrovisor para ver se a aparência denunciava sua situação, e resolveu que dava para enfrentar a vida, bastava não tirar o ray-ban da cara.

Chegando ao supermercado, pegou um carrinho de compras e consultou a lista que a empregada lhe dera. Farinha. Carne de segunda. Azeite. papel higiênico. Cebola. A mulher que ela não era assumira de novo o comando.

[Texto de Martha Medeiros, publicado em 23 de abril de 2006.]

2 Comments:

  1. Unknown said...
    Nossa muito bom esse texto. Adorei, chorar faz bem. Bejos
    J. said...
    Menina, eu lendo e jurando que o texto era teu.
    Tá vendo como tu é minha escritora favorita?
    Ow, e dá pra aparecer?
    Saudade!
    Beijos!

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